O
que a Fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez: ela repete
mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente.
Essa
fatalidade (não há foto sem alguma coisa ou alguém) leva a
Fotografia para a imensa desordem dos objetos – de todos os objetos
do mundo: por que escolher (fotografar) tal objeto, tal instante, em
vez de tal outro?
Seja
o que for que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é
sempre invisível: não é ela que vemos.
Observei
que uma foto pode ser objeto de três práticas (ou de três emoções,
ou de três intenções): fazer, suportar, olhar.
Sem
dúvida, é metaforicamente que faço minha existência depender do
fotógrafo.
Pois
a Fotografia é advento de mim mesmo como outro: uma dissociação
astuciosa da consciência de identidade.
Esse
distúrbio é no fundo um distúrbio de propriedade. O direito disse
isso a seu modo: a quem pertence a foto: ao sujeito (fotografado)? Ao
fotógrafo? […] Inúmeros processos, segundo parece, exprimiram
essa incerteza de uma sociedade para a qual o ser baseava-se em ter.
Diante
da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que
eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e
aquele de que ele se serve para exibir sua arte.
A
“vida privada” não é nada mais que essa zona de espaço, de
tempo, em que não sou uma imagem, um objeto. O que preciso defender
é meu direito político de ser um sujeito.
Assim,
parecia-me que a palavra mais adequada para designar
(provisoriamente) a atração que sobre mim exercem certas fotos era
aventura.
Nesse
deserto lúgubre, me surge, de repente, tal foto; ela me anima e eu a
animo. Portanto, é assim que devo nomear a atração que a faz
existir: uma animação. A própria foto não é em nada animada (não
acredito nas fotos “vivas”) mas ela me anima: é o que toda
aventura produz.
Como
Spectator, eu só me interessava pela Fotografia por “sentimento”;
eu queria aprofundá-la, não como uma questão (um tema), mas como
uma ferida: vejo, sinto, portanto noto, olho e penso.
Do
mesmo modo, gosto de certos traços biográficos que, na vida de um
escritor, me encantam tanto quanto certas fotografias; chamei esses
traços de “biografemas”; a Fotografia tem com a História a
mesma relação que o biografema com a biografia.
Em
um primeiro tempo, a Fotografia, para surpreender, fotografa o
notável; mas logo, por uma inversão conhecida, ela decreta notável
aquilo que ela fotografa.
No
fundo, a Fotografia é subversiva, não quando aterroriza, perturba
ou mesmo estigmatiza, mas quando é pensativa.
Para
mim, as fotografias de paisagens (urbanas ou campestres) devem ser
habitáveis, e não visitáveis.
Ora,
Freud diz do corpo materno que “não há outro lugar do qual
possamos dizer com tanta certeza que nele já estivemos”. Tal
seria, então, a essência da paisagem (escolhida pelo desejo):
heimlich, despertando em mim a Mãe (de modo algum inquietante).
A
vidência do Fotógrafo não consiste em “ver”, mas em estar lá.
No
fundo – ou no limite – para ver bem uma foto mais vale erguer a
cabeça ou fechar os olhos. “A condição prévia para a imagem é
a visão”, dizia Janouch a Kafka. E Kafka sorria e respondia:
“Fotografam-se coisas para expulsá-las do espírito. Minhas
histórias são uma maneira de fechar os olhos”. A fotografia deve
ser silenciosa (há fotos tonitruantes, não gosto delas): não se
trata de uma questão de “descrição”, mas de música. A
subjetividade absoluta só é atingida em um estado, um esforço de
silêncio (fechar os olhos é fazer a imagem falar no silêncio). A
foto me toca se a retiro de seu blablablá costumeiro: “Técnica”,
“Realidade, “Reportagem”, “Arte”, etc.: nada a dizer,
fechar os olhos, deixar o detalhe remontar sozinho à consciência
afetiva.
Ao
contrário dessas imitações, na Fotografia jamais posso negar que a
coisa esteve lá. Há dupla exposição conjunta: de realidade e de
passado.
Eu
podia dizer isso de outro modo: o que funda a natureza da Fotografia
é a pose.
[…]
ao olhar uma foto, incluo fatalmente em meu olhar o pensamento desse
instante, por mais breve que seja, no qual uma coisa real se
encontrou imóvel diante do olho.
[…]
na Foto, alguma coisa se pôs diante do pequeno orifício e aí
permaneceu para sempre (está aí meu sentimento).
A
foto é literalmente uma emanação do referente. De um corpo real,
que estava lá, partiram radiações que vêm me atingir, a mim, que
estou aqui; pouco importa a duração da transmissão; a foto do ser
desaparecido vem me tocar como os raios retardados de uma estrela.
Uma espécie de vínculo umbilical liga a meu olhar o corpo da coisa
fotografada: a luz, embora impalpável, é aqui um meio carnal, uma
pele que partilho com aquele ou aquela que foi fotografado.
A
Fotografia não rememora o passado (não há nada de proustiano em
uma foto). O efeito que ela produz em mim não é o de restituir o
que é abolido (pelo tempo, pela distância), mas o de atestar que o
que vejo de fato existiu.
Certamente,
mais que outra arte, a Fotografia coloca uma presença imediata no
mundo – uma co-presença; mas essa presença não é apenas de
ordem política (“participar dos acontecimentos contemporâneos
pela imagem”), ela é também de ordem metafísica.
A
Fotografia não fala (forçosamente) daquilo que não é mais, mas
apenas e com certeza daquilo que foi. Essa sutileza é decisiva.
Diante de uma foto, a consciência não toma necessariamente a via
nostálgica da lembrança (quantas fotografias estão fora do tempo
individual), mas, sem relação a qualquer foto existente no mundo, a
via da certeza: a essência da Fotografia consiste em ratificar o que
ela representa.
Toda
fotografia é um certificado de presença.
É
o advento da Fotografia – e não, como se disse, o do cinema –
que partilha a história do mundo.
Os
realistas, entre os quais estou, e entre os quais eu já estava
quando afirmava que a Fotografia era uma imagem sem código – mesmo
que, evidentemente, códigos venham infletir sua leitura -, não
consideram de modo algum a foto como uma “cópia” do real – mas
como uma emanação do real passado: uma magia, não uma arte.
A
Fotografia justifica esse desejo, mesmo que não o satisfaça: só
posso ter a esperança louca de descobrir a verdade porque o noema da
Foto é precisamente isso foi e porque vivo na ilusão de que basta
limpar a superfície da imagem para ter acesso ao que há por trás:
escrutar quer dizer virar a foto, entrar na profundidade do papel,
atingir sua face inversa (o que está oculto é, para nós,
ocidentais, mais “verdadeiro” do que o que está visível).
Todavia,
na medida em que se trata de um ser – e não mais de uma coisa –
a evidência da Fotografia tem um alcance completamente diferente.
Ver fotografados uma garrafa, um ramo de íris, uma galinha, um
palácio, envolve apenas a realidade. Mas um corpo, um rosto e
sobretudo, com frequência, os de um ser amado? Já que a Fotografia
(este é seu noema) autentifica a existência de tal ser, quero
encontrá-lo por inteiro, ou seja, em essência, “tal que em si
mesmo”, para além de uma simples semelhança, civil ou
hereditária.
Não,
o ar é essa coisa exorbitante que induz do corpo à alma –
animula, pequena alma individual, boa em um, má em outro.
Nessa
foto de verdade, o ser que amo, que amei, não está separado dele
mesmo: enfim ele coincide.
O
ar é, assim, a sombra luminosa que acompanha o corpo; e se a foto
não chega a mostrar esse ar, então o corpo vai sem sombra, e uma
vez cortada essa sombra, como no mito da Mulher sem Sombra, resta
apenas um corpo estéril.
Pois
a Fotografia tem esse poder – que ela perde cada vez mais, na
medida em que a pose frontal é considerada arcaica – de me olhar
direto nos olhos.
O
olhar fotográfico tem algo de paradoxal, que às vezes encontramos
na vida: outro dia, no café, um adolescente, sozinho, percorria a
sala com os olhos; de vez em quando seu olhar pousava em mim; eu
tinha então a certeza de que ele me olhava, sem, no entanto, estar
certo de que ele me via: distorção inconcebível: como olhar sem
ver?
De
fato, ele não olha nada; ele retém para dentro seu amor e seu medo:
é isto o olhar.
É
aqui que está a loucura; pois até esse dia nenhuma representação
podia assegurar-me o passado da coisa, a não ser através de
substitutivos; mas com a Fotografia, minha certeza é imediata:
ninguém no mundo pode me desmentir. A Fotografia torna-se então,
para mim, um medium estranho, uma nova forma de alucinação: falsa
no nível da percepção, verdadeira no nível do tempo: uma
alucinação temperada, de certo modo, modesta, partilhada (de um
lado, “não está lá”, do outro, “mas isso realmente esteve”):
imagem louca, com tinturas de real.
Julguei
compreender que havia uma espécie de laço (de nó) entre a
Fotografia, a Loucura e algo cujo nome eu não sabia bem. Eu começava
por chamá-lo: o sofrimento de amor.
Eu
reunia em um último pensamento as imagens que me haviam “pungido”
(já que essa é a ação do punctum), como a da negra de colar
pequeno, de sapatos de presilhas. Através de cada uma delas,
infalivelmente, eu passava para além da irrealidade da coisa
representada, entrava loucamente no espetáculo, na imagem,
envolvendo com meus braços o que está morto, o que vai morrer, tal
como fez Nietzsche, quando a 3 de janeiro de 1889 lançou-se a chorar
ao pescoço de um cavalo martirizado: enlouquecido por causa da
Piedade.
A
sociedade procura tornar a Fotografia sensata, temperar a loucura que
ameaça constantemente explodir no rosto de quem a olha.
Diante
dos clientes de um café, alguém me disse justamente: “Olhe como
são apagados; hoje em dia, as imagens são mais vivas que as
pessoas”. Uma das marcas de nosso mundo talvez seja essa: vivemos
segundo um imaginário generalizado.
Fragmentos retirados do livro "A câmara clara - Nota sobre a fotografia", de Roland Barthes.
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